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Foto do escritorEduarda Rodrigues

Esse é ou não um texto sobre sonhos?

Atualizado: 17 de abr. de 2023


Recebi o chamado para o Projeto Democracia, Artes e Saberes Plurais do IEA em dezembro de 2018 e me inscrevi. Acostumada a não me encaixar na maioria dos editais, fiquei fascinada pela descrição do que seria o projeto e mais ainda quando vi que um dos requisitos era ter uma vivência na periferia. Enfim, os meus 10 anos de Capão Redondo pesariam no meu currículo.


Lembro do dia da minha entrevista, eu estava nervosa e não lembrava de coisas básicas sobre a minha vida, não sabia responder perguntas sobre o cursinho onde fui aluna e depois professora por anos. Fui entrevistada pelo Martin Grossmann e Dálcio Marinho, quando me desculpei pelo nervosismo, disseram que era normal, já que eu estava sendo entrevistada por dois homens brancos em uma sala fechada. Esse comentário me acalmou um pouco, mas não o bastante, saí do IEA com o sentimento que mais uma porta acabara de ser fechada. Por isso, foi com grande alegria que recebi o e-mail com minha aprovação.

Minha foto para o crachá - Alegria estampada na cara!

Durante o mês de janeiro de 2019, participei de reuniões para formação. Nesses encontros, houve uma melhor apresentação do projeto, dos pesquisadores e supervisores, dos termos técnicos e da metodologia que seria usada para a coleta de dados para elaboração do censo. Fiquei ansiosa pelo trabalho de campo, e descobri que minha empolgação era como um pressentimento de como seria bom o que aconteceria comigo.


A experiência de entrar em casas, onde a realidade era em muitos aspectos muito parecida com a minha foi, no mínimo, mágica. Uma das entrevistas que me marcou de uma forma louca foi na casa de uma menina que tinha a mesma idade que eu, era mãe de três crianças e cuidava sozinha dos pequenos. Uso a palavra “menina”, pois é assim que me vejo e sinto, uma criança que tem o mundo e uma imensidão de sonhos para realizar, mas estava ali aquela menina/mulher fazendo um milagre em uma casa de apenas um cômodo sem janela. Além da questão de a nossa idade ser a mesma, não pude não lembrar da minha mãe que com os mesmos 25 anos tinha também 3 filhos, estando grávida do quarto, e que também fazia milagres em um cômodo. Em casa, fiquei pensando o que aconteceu para que minha história seguisse um caminho diferente do de minha mãe e da moça que entrevistei no Jardim São Remo. Ainda não encontrei uma resposta.


Falando em minha mãe, não consigo deixar de lado meu berço, entre o Mucuri e o Jequitinhonha (Minas Gerais). Nasci e cresci em um lugar em que as pessoas gostam de contar causos e estórias, e você escuta enquanto toma um café e come uma quitanda ou o almoço que acabou de sair do fogo. Negar um aperitivo é sinal de desfeita, algo que dificilmente será perdoado. As minhas comilanças durante as entrevistas do censo ficaram famosas, mas me atrevo a dizer que é algo da minha criação.


Durante o trabalho de campo, identifiquei que as pessoas, principalmente as mulheres com mais idade, gostavam de conversar e contar um pouco da sua vida, e ouvir suas histórias enquanto tomava um café era como voltar para o meu ninho.


Com o passar do tempo e do acúmulo de histórias, percebi que elas se repetiam. Uma das perguntas do censo é “sabe ler e escrever?” e, como resposta, eu nunca ouvia só “não”, esse “não” vinha acompanhado de uma história que justificava a ausência desse conhecimento. Entre as justificativas estavam: “trabalhar na roça”, “cuidar dos irmãos”, “o pai achava que a escola era lugar para namorar”... e no fim, elas acabavam se casando cedo e precisavam cuidar dos filhos. Essas respostas, em geral, eram dadas por mulheres negras e nordestinas, existindo evidentemente algumas poucas exceções. Penso que é importante ressaltar que essas mulheres que conheci na São Remo são analfabetas, mas possuem um enorme controle das palavras, conseguem narrar suas histórias de forma a prender a atenção e despertar interesse. Pretendo registrar essas histórias, e através da fala de mulheres velhas conhecer as meninas que elas foram e qual a relação que tiveram com a escola, quais os motivos do abandono escolar e quais os sentimentos elas guardam desse momento.


Participar do censo me proporcionou vivências únicas. Em uma delas, no mês de maio de 2019 participei da formação dos novos bolsistas, comecei a ficar metida quando concedi, junto com as coordenadoras e algumas outras bolsistas, uma entrevista para um aluno da USP do curso de jornalismo sobre a experiência no projeto.


Mas as aventuras estavam longe de chegar ao fim, em agosto de 2019 a equipe recebeu o convite para conhecer o Complexo de Favelas da Maré. De malas na mão, eu esperava o ônibus para mais uma viagem de campo. Lembrei de meu vizinho, que sempre me dizia: “quebrada é quebrada em qualquer lugar”. Como moradora de periferia, e que já conhecia o Rio de Janeiro, não esperava me surpreender com o que veria na Maré.


O que a Maré fez foi mais que me surpreender, me deixou sem ar a cada marca de bala nas paredes, a cada moleque armado, a cada moto (e eram muitas!) pilotada por mulheres sem capacete com aquele ar de quem sabe o que está fazendo. O impacto maior veio com os depoimentos das mães que tiveram seus filhos mortos pela polícia. Na minha frente, três mães contavam sua história. Foi impossível não relacionar aquilo tudo com o conto de Conceição Evaristo “Os guris de Dolores Feliciana”, no qual Dolores perde os três filhos, mortos por tiros. Lembrei do conto e não controlei as lágrimas. Precisei discordar do meu vizinho, porque aquela quebrada não se parecia em nada com a minha. Pensei se conseguiria morar ali, sobre a grande ameaça de morrer a qualquer momento vítima de uma bala perdida e de ter minha vida desrespeitada pelo Estado.


Porém, uma coisa é certa no nosso povo: a resistência. E ali ela se realizava através das atividades organizadas pelas Redes Maré. A sensação de impotência que havia se instalado em mim se dissipou a cada projeto apresentado. Foi um bálsamo ver mulheres, na sua maioria negras, tomarem o controle daquelas ações que modificam a vida de toda a comunidade. Agradeço ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) e a Redes Maré por essa experiência que modificou totalmente a minha visão sobre existir só um modelo de periferia e que reforçou a importância de projetos sociais no combate à violência.


O censo é um lugar de fortalecimento político e onde pude criar uma rede de afeto e cuidado. Algumas pautas eu já tinha acesso por ser uma mulher pobre, negra e bissexual, no entanto, durante esses meses fui levada a olhar para questões pelas quais não sou atingida. Nesse movimento, além de um sentimento de empatia, criei o de pertencimento.






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2 Comments


Unknown member
Feb 10, 2023

É inspiradora sua trajetória de pesquisadora, Duda. E instigante toda oportunidade de poder acompanhá-la!

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Unknown member
Jan 27, 2023

Lindo relato! Parabéns pela experiência! Forte e impactante!

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