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Foto do escritorEduarda Rodrigues

A representação feminina em Frankenstein

Atualizado: 18 de abr. de 2023

FRANKENSTEIN: OU O PROMETEU MODERNO

Agora eu me achava em vias de formar um outro ser cujo temperamento me era totalmente desconhecido; ela, pois se tratava de uma mulher, podia ser dez mil vezes mais malvada que seu companheiro e, por si mesma, interessada em matar e destruir. (SHELLEY, 2017, p. 178)

Mary Shelley: questionamentos sobre a representação feminina em Frankenstein


Ao narrar sua história para o capitão Robert Walton, Victor Frankenstein descreve o momento que está prestes a criar uma fêmea para acompanhar a criatura anteriormente criada por ele. Frankenstein depois de iniciar seu trabalho reflete se a sua nova criação não seria pior que a primeira, já que se trataria de uma mulher.


Mary Shelley era filha da escritora inglesa Mary Wollstonecraft, filósofa feminista e uma das primeiras a reivindicar o direito das mulheres a ter seu espaço na educação e vida social inglesa, e do romancista e jornalista William Godwin, que garantiu que Mary e sua meia-irmã Fanny Imlay tivessem uma educação não convencional para a época.


Dessa maneira, considerando sua biografia, causa um estranhamento a forma como a autora retrata a mulher, não só essa a ser criada por Victor, mas todas as seis mulheres que têm um papel mais significativo no romance. A narrativa, dividida em grandes blocos, traz mecanismos que proporcionam mistério e suspense, típicos do romance gótico. Acontece em estilo de encaixe, duas histórias dentro de uma outra, que mesmo dentro de uma ordem narrativa, segue um tempo psicológico.


As personagens femininas são apagadas e aparecem através do olhar masculino, dos três narradores principais: Capitão Robert, Victor Frankenstein e a Criatura, que trazem a maior parte da história através de camadas sucessivas de flashback, narrado em primeira pessoa do singular, o que centraliza a história em torno da atuação masculina. Até mesmo o parir que é algo dado às mulheres pela natureza é retirado delas é passado ao cientista que resolve dar a vida a uma invenção:


Se a queixa de Adão na epígrafe for lembrada também, o romance começa a parecer um pesadelo paródico da religião patriarcal, em que o filho é construído e não gerado, a Carne é feita Palavra, e as mulheres cedem o poder da concepção aos homens, enquanto são judicialmente incriminadas (como Eva) ou feitas em pedaços. [...] (BALDICK, 1987)


Como é realizada a construção narrativa do romance


As paisagens europeias são descritas em abundância durante o romance. Aparecem breves comentários sobre a vegetação, a natureza é utilizada para criar uma atmosfera envolvente. Existe uma oposição entre social e natural, o homem mais feliz seria aquele ligado a natureza, e infeliz aquele que se entrega compulsoriamente à ciência. Mesmo com toda a descrição de rios, montanhas, as cenas de maior tensão ocorrem em lugares fechados construídos pelo homem.


O livro possui vinte e quatro capítulos, contendo na sua maior parte texto epistolar, formado por cartas que funcionam como um microcosmo da narrativa. Através de quatro cartas trocadas entre o capitão Robert e sua irmã, o leitor tem contato com a primeira personagem feminina, passiva e com papel secundário, descrita como amável e bondosa, a Margareth Saville.


Margareth Saville


Margareth encontrou a felicidade no ambiente doméstico, enquanto seu irmão busca por aventuras e momentos grandiosos:


Oh! Minha querida irmã, a perspectiva das angústias que você experimentará em seu coração é-me ainda mais terrível do que minha própria morte. Mas você tem um esposo e filhos encantadores: você pode ser feliz. Que os céus a abençoem! (SHELLEY, 2017, p.229-230)

Através das cartas enviadas a Margaret fica exposto que durante sua viagem Robert e seus homens resgatam Victor Frankenstein do meio das águas congeladas e através da história contada pelo náufrago ao Capitão vem à tona Caroline Beaufort, mãe de Victor.


Caroline Beaufort


Caroline era filha de um homem que perdendo toda a sua fortuna se muda para um lugar afastado, morrendo pouco depois deixando a filha órfão. O pai de Victor era um servidor público respeitado e se mostra como salvador da moça, se tornando esposo dela.


A descrição mostra como Caroline tinha a índole caridosa, firme, bondosa, mas não fala como ela se sentiu ao perder o pai e em relação ao casamento com um homem bem mais velho.


O que havia de mais memorável na personagem era a necessidade de ajudar os outros e ter na alegria alheia a sua. Característica comum às outras personagens femininas do romance que tem seus sentimentos apagados em prol dos homens. Foi assim que ela adotou como filha, Elizabeth Lavenza, amou a menina ao ponto de contrair e morrer com febre escarlatina cuidando da pequena, mesmo sendo alertada para não ter tal atitude.


Elizabeth Lavenza


Elizabeth Lavenza, a criança adotada, é objetificada desde o primeiro instante por Victor:

Uma noite, antes de ela ser trazida para minha casa, minha mãe me disse alegremente: “Tenho um belo presente para o meu Victor –amanhã ele o receberá.” E quando, na manhã, ela me apresentou Elizabeth como o presente prometido, eu com toda a sinceridade infantil tomei suas palavras ao pé da letra, e olhei para Elizabeth como se ela fosse minha – minha para proteger, amar e tratar com carinho. Todos os elogios dirigidos a ela eu os tomava como feitos a algo que me pertencia. Nós nos tratávamos familiarmente por primos. Nenhuma palavra, nenhuma expressão poderia incorporar melhor o tipo de parentesco que ela representava para mim- mais do que irmã, já que até a morte ela deveria ser minha. (SHELLEY, 2017, p.38)

Elizabeth só se preocupa com as aparências das coisas ao seu redor, mas não com sua essência, não possui curiosidade como seu amigo e futuro esposo Victor. Chamada de “anjo do lar” aquela que acalma e consola a todos. Sofre com a morte de Caroline e depois com a de Willian (irmão mais novo de Victor, primeira vítima da criatura do cientista), mas consegue controlar sua dor para servir de apoio para a família. Se culpa pelo crime acreditando que a causa foi uma joia que deixara a criança usar, seria ela a culpada da morte da matriarca e agora do caçula dos Frankenstein.


O sofrimento aumenta quando ela descobre que Justine Moritz é acusada pelo assassinato, Elizabeth tem total certeza da inocência da amiga e a defende até o último minuto. A senhorita Lavenza apesar de todas as adversidades, continua mesmo que um pouco abatida, com seu comportamento angelical. Espera por Victor trocando com ele cartas enquanto este está longe, se preocupa quando o “primo” adoece, e se culpa quando passados anos o cientista não mostra alegria ao voltar para casa. Pensa que talvez o casamento arranjado entre eles não esteja agradando o rapaz, pensamento que logo é negado por Victor, que mesmo sendo ameaçado pela sua criação resolve casar com a moça, que é estrangulada na noite de núpcias pelo “monstro”, sendo esse assassinato, o clímax da narrativa.


Justine Moritz


Acontecem muitas injustiças na obra, entre elas a condenação de Justine Moritz, empregada da família, uma moça subjugada, submissa e pura. Moritz foi rejeitada pela mãe que a culpava pela morte dos irmãos e umas das poucas alegrias que teve foi ser acolhida pelos Frankenstein.


Uma sucessão de fatos, incluindo a joia que Willian usava e apareceu no bolso da empregada, colocada ali pela Criatura enquanto ela dormia, a torna a principal suspeita. Sofrendo forte pressão psicológica por parte dos homens da lei, Justine confessa o crime mesmo sendo inocente:

Confessei, sim, mas confessei uma mentira. Confessei para que pudesse conseguir uma absolvição total; mas agora essa mentira pesa mais no meu coração do que todos os outros pecados. Oh, Deus do céu, perdoai-me! Desde que eu fui condenada que meu confessor não me deixa em paz, ele me ameaçava e tornava a ameaçar, até que eu quase me convenci de que era mesmo o monstro que ele dizia. Ameaçou-me com a excomunhão e com o fogo do inferno para sempre se eu continuasse na minha obstinação. Querida senhora, eu não tinha ninguém que me amparasse; todos me olhavam como uma desgraça destinada à ignomínia e à perdição. Que podia eu fazer? Num momento de desespero, agarrei-me a uma mentira; e agora sinto-me mais desgraçada do que nunca. (SHELLEY, 2017, pag. 94- 95)

A inocência de Justine é insignificante frente ao julgamento social, as acusações que sofre têm um peso suficiente para deixar a moça confusa sobre sua real condição, um medo de uma condenação divina a faz preferir uma condenação terrena e ela assume o crime cometido pela Criatura de Victor.


A Criatura


Adiantada a narrativa, chega ao ponto onde a Criatura frente ao Victor tenta convencer o cientista de que ele não tem uma natureza ruim, mas que as suas experiências desde que fora criado e abandonado pelo Frankenstein o levaram a cometer tais atrocidades. Como poderia ele, que não teve amor ou orientação, ser bom? Foi agredido ao entrar em vilas, até mesmo quando salvou uma criança não teve agradecimento dos humanos, apenas insultos e machucados.


No meio da narrativa, já no décimo segundo capítulo, temos o momento que a Criatura desenvolve aquilo que poderia servir para humanizá-lo, depois de tantas mágoas ele se esconde próximo a uma família e começa a acompanhar o seu dia a dia e aprender com eles a linguagem, tem acesso às obras literárias como Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe; As Vidas, de Plutarco e o Paraíso perdido, de Milton, que despertam sentimentos até ali desconhecidos.


Agatha De Lacey


Na casa que servia indiretamente de escola para a Criatura, moravam o velho De Lacey, seu filho Félix e a jovem Agatha, que não parece ter expressão, é o exemplo de servidão para o pai e o irmão. Não tem outra ocupação a não ser os afazeres domésticos, seu pai canta e o irmão lê, mas Ágatha apenas admira as ações dos homens da casa. Eles foram exilados nesse local depois que Félix ajudou um turco, pai de sua noiva, Safie, fugir da cadeia.


Safie


Safie, assim como Elizabeth, é objetificada na história. O pai ao perceber o interesse de Félix pela jovem, promete a mão da garota se ele conseguir fugir para um lugar seguro, ela seria um pagamento que passaria das mãos do pai para as do marido. Ao se ver livre da cadeia e da condenação o turco resolve não cumprir sua palavra, mas Safie recebera da mãe uma criação libertadora que incentivava a busca pelo conhecimento e não suportava a ideia de ir para o país do pai e viver suas tradições. Ao se ver livre da tutela paterna Safie foge em busca daquilo que acredita amar, vai ao encontro de Félix:


Ao ficar sozinha, decidiu o que devia fazer numa emergência dessas. Viver na Turquia era uma coisa que a horrorizava; sua religião e seus sentimentos não o permitiam. Por alguns papéis de seu pai, que lhe caíram nas mãos, soube do exílio do seu amado e do nome do lugar onde ele então vivia. Hesitou durante algum tempo, mas acabou por tomar uma decisão. Reunindo algumas jóias que lhe pertenciam e uma certa quantia em dinheiro, deixou a Itália com uma criada natural de Leghorn, mas que sabia turco e partiu para a Alemanha. (SHELLEY, 2017, p- 136.)

Safie é a única mulher a contrariar aquilo que foi determinado pela sociedade patriarcal, decide com quem e onde quer viver. Abandona a sua cultura e língua, determinada a adquirir o idioma do amado, mesmo que mude toda a sua vida para viver a vida proposta por um homem, somente ela entre as personagens femininas parece ter tido o direito à escolha.


A criatura se aproveita das aulas destinadas a Safie para aprender novas palavras e melhorar seu vocabulário. Nesse ínterim cria coragem para se apresentar a família que é por ele muito admirada, mas o plano não sai como o desejado e sua aparência repulsiva mais uma vez cria um julgamento precipitado nos humanos e Félix o agride e expulsa.


A criatura pede uma companheira ao Frankenstein


Depois de contextualizar Victor de todos esses fatos, a Criatura pede que o cientista crie uma fêmea para lhe fazer companhia. Mais uma vez a mulher seria um objeto pertencente ao macho.


Cercado de ameaças, Frankenstein viaja para dar início a cópia do seu invento. Depois de muito pensar ele chega à conclusão que é mostrada no começo desse trabalho, que uma fêmea poderia ser bem pior que o macho e não cumpre a promessa feita. A mulher parcialmente construída poderia ser considerada como mais uma figura feminina a morrer através das atitudes de Victor. Oates afirma em O anjo caído de Frankenstein:


Mas, subitamente enojado com o “processo imundo” que realizou, Frankenstein destrói sua obra [...] Mais tarde ele pensa, olhando para os restos de sua criatura semi-pronta, que ele quase mutilou a carne viva de um ser humano; mas ele nunca sente qualquer remorso pelo que fez e nunca considera que, ao “mutilar” a carne da noiva do demônio, ele assassinou a piedosa e perfeita Elizabeth, a prima-noiva que ele diz amar. (OATES, 1984)

Oates faz essa afirmação, pois se comportando dessa forma o cientista desperta a fúria da Criatura que assassina Clerval, grande amigo de Frankenstein e depois a sua esposa, Elizabeth, pois representavam a família que o “monstro” sonhava possuir e esperava receber das mãos de seu criador assim como ele, segundo Levine, recebera dos pais a noiva Elizabeth:


O pai de Frankenstein, ao lhe dar o presente e ao cuidar dele, se comporta com seu filho como o monstro gostaria que Frankenstein se comportasse com ele. (LEVINE, 1981)

Victor Frankenstein e a Criatura


Em suma, como é comum nos romances góticos, Victor e a “criatura” assumem papéis de vilões e vítimas em determinados momentos da narrativa, não representando totalmente o bem ou o mal.


Começa depois dos crimes uma grande perseguição nas regiões árticas, onde o cientista tenta encontrar a sua criação para a destruir. A solidão dessa região ressalta o estado de espírito dos dois. O “monstro” procura sempre ficar a uma distância que seja possível deixar frescas as pistas para o seu paradeiro, entretendo Victor nessa busca até o fim dos seus dias no navio do Capitão Robert.


Victor abandona a Criatura assim que recebe a vida, sem ao menos lhe dar um nome ou algum direcionamento sobre como deveria agir. Sozinho ele tenta se adaptar aos climas conforme mudava de país, pois, a Europa tem um clima muito diversificado.


A narrativa passa por lugares como Alemanha, que contém um clima fresco e úmido; Londres e Suíça que apresentam grande variação de temperatura, invernos mais frios e verões mais quentes; além da Escócia onde o clima não é tão frio. Sozinho ele procura aprender sobre o mundo e como se fazer parte carregando uma aparência diferente, Soares em sua dissertação defende que esse sentimento era comum as mulheres do século dezoito:

Quando a Criatura inicia sua narrativa e conta como caminhou sua vida até o ponto em que se encontra com Victor Frankenstein nas geleiras, acompanhamos sua trajetória ao encontro de si mesma e de suas frustrações diante desse conhecimento e do contato com o outro. Sua trajetória está irremediavelmente atrelada à condição da mulher na sociedade oitocentista, que ainda entendia o corpo da mulher como estrangeiro, diferente, o ser mulher como distante e digno apenas de estar colocado à margem. (SOARES, 2015, p 105)

Assim como para as mulheres oitocentistas, o conhecimento adquirido pela criatura mostra as injustiças sofridas por ela, criando uma insatisfação e vontade de mudar a realidade, mas a cada tentativa é desmotivada e agredida pela sociedade:

Que estranha é a natureza do conhecimento! Uma vez que adere à mente, ali se fixa como limo à rocha. Eu por vezes desejava livrar-me de todo pensamento e de todo sofrimento, mas percebi que havia apenas uma forma de superar a sensação de dor, e ela era a morte. (SHELLEY, 2017, p 234)

Os textos bíblicos afirmam que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e que a mulher havia sido gerada da costela retirada do homem, seria ela vista por todo o sistema patriarcal como uma versão mal feita, algo inferior. Esse sentimento de imperfeição é encontrado quando a Criatura diz: Minha forma é uma versão impura da tua”, a Criatura pode não representar a mulher, mas certamente ocupa o mesmo lugar social que ela.


Como o “monstro” afirma, o conhecimento se fixa na mente como limo, assim sendo Mary Shelley não poderia se livrar da educação recebida do pai e da influência da mãe e do seu círculo de amizades. Considerando esses fatores é difícil pensar que a representação feminina em sua obra fora obra do acaso e não tenha ali um levantamento crítico e uma tentativa de chamar à atenção para o papel dado à mulher da sua época. A narrativa através de vozes masculinas é um recurso para apresentar aspectos sociais que as mulheres não tinham acesso, vivendo em uma sociedade sexista que, raramente permitia que elas tivessem acesso ao universo científico, ou desbravar novos territórios. A mudez e a falta de protagonismo das mulheres em Frankenstein são um reflexo da sociedade em que o “monstro” foi idealizado.


OBSERVAÇÃO:


Frankenstein é uma narrativa extensa de mais de duzentas páginas, dividida em 24 capítulos onde a Mary Shelley abarca temas como a ciência, o humano, a monstruosidade, injustiças, além da condição da mulher. Considerando esses aspectos, constatei que não teria condições de analisar toda a obra, devido à sua extensão e profundidade, por isso, este texto tem como propósito fazer um recorte e analisar a representação feminina na obra. Para a elaboração desse análise se fez necessária a leitura de ensaios e dissertações, além de considerar a sociedade onde foi escrito o clássico, que é lido e comentado através de séculos.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BALDICK, Chris. Á sombra de Frankenstein, 1987. Trad. Edu Teruki Otsuda


OATES, Joyce Carol. O anjo caído de Frankenstein, 1984, Trad. Edu Teruki Otsuda.


SHELLEY, Mary. Frankenstein. Trad. Miécio Araújo Jorge Honkis. – 2 ed –Porto Alegre: L&PM, 2017.


SOARES, Janile Pequeno. Frankenstein e a monstruosidade das intenções: A criatura como representação da condição feminina - João Pessoa, 2015.




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