Conhecendo o autor
José Martiniano de Alencar nasceu em 1 de maio na cidade de Messejana (atualmente um bairro de Fortaleza, Ceará), no ano de 1829. Para aqueles que acreditam em astrologia, um taurino com a personalidade de gêmeos, ou seja, esperto, inteligente e com grande habilidade com as palavras. Para os céticos, fica a informação que ele foi autor de grandes obras brasileiras como Iracema, O Guarani, e as duas que serão analisadas aqui, Lucíola (1862) e Senhora (1875). Esses dois últimos romances denunciam uma ética burguesa e realista das conveniências durante o segundo reinado.
Lucíola e Senhora: o romance urbano
Lucíola e Senhora se encaixam no dito romance urbano, aquele que apresenta os problemas sociais e morais decorrentes do desenvolvimento das cidades. De acordo com Bosi (2017), os trechos mais provocadores de Senhora e Lucíola são aqueles dedicados aos costumes burgueses e através deles, Alencar deplora a pouquidade das relações cortesãs que se deixam sujeitar ao dinheiro.
O romance urbano, através de suas críticas, irá colocar em destaque a vida social, mas usando o amor como tema central. A situação social e familiar da mulher, principalmente em relação ao casamento e ao amor. Amor este, idealizado, sublimado, capaz até de ações imorais, mas que se redime no final. Bosi aponta que,
“Alencar crê nas “razões do coração” e, se as sombras do seu moralismo romântico se alongam sobre as mazelas de um mundo antinatural (o casamento por dinheiro, em Senhora; a sina da prostituição, em Lucíola), sempre se salva, no foro íntimo, a dignidade última dos protagonistas, e se redimem as transações vis respondo de pé herói e heroína.” (BOSI 2017- pág. 147)
Em uma sociedade patriarcal, e no contexto do século XIX, era natural a imagem de uma mulher submissa e passiva. Essa imagem era reproduzida nos textos românticos. No entanto, em Lucíola e Senhora as personagens são ativas e vão contra os acordos morais impostos pelas sociedade e rompem com o ideal de donzelas ingênuas.
O poder do dinheiro nas relações burguesas
Em ambos os romances estão presentes os conflitos determinados pelo confronto do indivíduo com a sociedade. Maria da Glória e Aurélia possuíam o coração puro em relação às maldades da sociedade, até que por motivos e formas diferentes elas enxergam como o dinheiro é poderoso. Por causa dele Aurélia é abandonada por Seixas e por ele Maria da Glória se entrega para poder salvar sua família que sofria com a febre amarela:
Na virada de 1849 para 1850, a tranquilidade que o Brasil vivia sob o reinado de dom Pedro II foi abalada pela chegada de um vírus devastador. Velho conhecido no exterior, mas novidade no país, o vírus da febre amarela pegou o governo imperial de surpresa e avançou sem piedade sobre as grandes cidades do litoral, deixando um rastro de pânico e morte.
A família de Maria da Glória também é vitimizada por essa doença e ela não enxerga outra saída a não ser se prostituir para ter condições financeiras para o tratamento. A força do dinheiro torna tudo em objeto, todas as relações são negócios.
“ Se, pensando nisto, atentarmos para a composição de Senhora, veremos que repousa numa espécie de longa e complicada transação,- com cenas de avanço e recuo, diálogos construídos como pressões e concessões, um enredo latente de manobras secretas, - no correr do qual a posição dos cônjuges vai se alternando. Vemos que o comportamento do protagonista exprime, em cada episódio, uma obsessão com o ato de compra a que se submeteu, e que as relações humanas se deterioram por motivos econômicos. A heroína, endurecida no desejo de vingança, possibilitada pela posse do dinheiro, inteiriça a alma como se fosse agente de uma operação de esmagamento do outro por meio do capital, que o reduz a coisa possuída. (Cândido, 1965, Pág-6)
Essas duas obras de José de Alencar trouxeram características escandalosas para um perfil feminino na sociedade do Brasil do século XIX. Transgrediram ao mostrarem um comportamento que não era comum.
Em Lucíola a personagem é uma prostituta que vivia na alta sociedade do Rio de Janeiro, mas que possuía a alma pura.
Em Senhora, Aurélia é uma jovem que recebe uma herança e decide comprar um marido. O homem por quem era apaixonada e a abandonou por uma mulher com mais dinheiro, e dessa forma quebra o estereótipo da virgem que espera ser escolhida.
As personagens são complexas porque fogem da dicotomia “bem” e “mal”. Candido diz que elas são simultâneas, ou seja, nelas o bem e o mal perdem, praticamente, a conotação simples que aparece nas outras obras de José de Alencar, cedendo lugar à humaníssima complexidade com que agem.
Os temas abordados por Alencar nestas obras são profundos para o contexto onde foram escritos, Candido afirma que,
“É o Alencar que se poderia chamar dos adultos, formado por uma série de elementos pouco heroicos e pouco elegantes, mas denotadores dum senso artístico e humano que dá contorno aquilino a alguns dos seus perfis de homem e mulher. Este Alencar, difuso pelos outros livros, se contém mais visivelmente em Senhora e, sobretudo, Lucíola, únicos livros, em que a mulher e o homem se defrontam num plano de igualdade, dotados de peso específico e capazes daquele amadurecimento interior inexistente nos outros bonecos e bonecas.” (Candido, 2000, pág, 204)
Um ponto importante para a discussão proposta aqui é a definição dos narradores, em Senhora o narrador é em terceira pessoa, já em Lucíola temos o foco narrativo limitado com a narração em primeira pessoa, feita da perspectiva pessoal de um indivíduo que participou dos acontecimentos. Paulo é quem conta a história de Lucíola através de cartas que envia para a senhora G. M., sua narração é feita posteriormente e com os olhos cheios das imposições e julgamentos sociais.
Moda e literatura
Alencar cede um espaço importante da narrativa para descrever como as personagens se vestem. O vestuário está ligado aos acontecimentos e ao processo psicológico da personagem.
“[...] na intuição da vestimenta feminina, que aborda como elemento de revelação da vida interior: os vestidos de Lúcia, por exemplo desde o discreto, de sarja gris, com que aparece na festa da Glória, até a chama de sedas vermelhas com que se envolve num momento de desesperada resolução, são tratados com expressivo discernimento. [...] Em Senhora, um peignoir de veludo verde marca o âmbito máximo da tensão entre os dois esposos.” (Candido, 2000, pág, 211)
Classe Social e o amor
Outro detalhe é a diferença de posições sociais que serve como dificultador para que o amor aconteça. Segundo Candido (2000), “esta diferença de condições é uma das molas da ficção de Alencar, correspondendo-lhe, no terreno psicológico, uma diferença de disposições e comportamentos, que é a essência do seu processo narrativo”.
Nas duas obras encontramos isto que o Candido domina como desníveis. Lucíola é uma meretriz e por isso é impedida pela convenção social de se casar com o homem que ama. Aurélia na primeira fase do livro é pobre, e dessa forma inadequada ao casamento com Seixas. Já na segunda, ela é superior ao homem que se deixa vender.
O nome como aspecto fundamental da personalidade das personagens
Os nomes também chamam atenção ao se relacionar profundamente com as personagens. Lucíola, como é apontado na própria obra, remete a Lúcifer o anjo decaído, mas também à luz. O nome possui ambiguidades, assim como a mulher que o carrega. Já Aurélia alude ao ouro, filha do ouro, nada a representaria melhor.
A forma como são chamadas carrega um peso para o seu destino e para quem são. Lucia tem como nome de batismo Maria da Glória, nome associado à pureza e que não combinaria com sua vida de meretriz.
A importância do amor e exemplo familiar
Apesar de sua forma fria e calculista, Aurélia mantém o respeito social, pois mesmo que por caminhos tortuosos cumpriu com o dever de uma mulher, que é encontrar um marido. Até o título do livro que conta a sua história carrega o título de Senhora, mas Lucíola, mesmo com o coração puro, não merece este título:
— Quem é esta senhora? perguntei a Sá.
A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades sociais.
— Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la?...
(Lucíola, pág. 13)
É comum nas obras de José de Alencar o passado ter um papel decisivo no psicológico e situação atual dos personagens. Se olhados os pormenores das narrativas aqui analisadas, nenhuma das protagonistas teve na família, pai e mãe que lhe mostrasse como deveria ser o amor recebido.
A família de Maria da Glória contrai febre amarela, dois dos seus irmãos morrem, ela recebe uma proposta de Couto para que se deitasse com ele em troca de algumas moedas de ouro que salvariam a sua família. Seu pai ao descobrir a expulsa para não desonrar o nome da família e isso condiciona toda a sua vida.
Após a morte do seu irmão, Aurélia é aconselhada pela mãe a se colocar à janela para arranjar pretendentes, mesmo não gostando da ideia ela atende aos apelos da mãe.
Lucíola externaliza a falta que esse amor faz:
“— Perdi a minha muito cedo e fiquei só no mundo; por isso invejo a felicidade daqueles que têm uma família. Há de ser tão bom a gente ser amada sem interesse! “(Lucíola, pág 19)
Conclusão ou como as personagens cumprem "seus papeis" como mulheres
Todas essas questões são resolvidas no final com a descoberta e aceitação do verdadeiro amor. Porém, se existe uma reabilitação para Seixas, que é perdoado e recebe o prêmio de ter a mulher que ama e ainda seu dinheiro, para Lucíola acontece sim uma redenção, mas acompanhada de castigo e autopunição.
Em Lucíola, o conflito além de social é também interno. Lúcia endossa os preconceitos da sociedade e acredita não ser merecedora do amor matrimonial. É através da sua morte que seu objetivo é alcançado, ela volta ao seu estado de pureza. A destruição do seu corpo leva a sobrevivência do seu espírito e assim a redenção é alcançada.
BIBLIOGRAFIA
ALENCAR, José de. Lucíola, São Paulo: Ática, 1991.
ALENCAR, José de. Senhora, São Paulo: Martin Claret, 2004.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira/ Alfredo Bosi. 52 ed. São Paulo: Cultrix, 2017.
CAMILO, V. Vagner. Revisão, atualização e atualidade do Romantismo. Apostila Língua Portuguesa - Módulo 3. Governo do Estado de São Paulo, São Paulo, 2003.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6.ed. Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda, 2000.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Volume 3. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1965.
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