Nos últimos anos percebemos que os noticiários foram tomados por episódios devastadores de violência escolar. Nós, atuantes na educação, nos vimos num misto de angústia, impotência e despreparo para lidar com situações que até então pareciam distantes da realidade brasileira. Sabemos bem que para resolver questões estruturais como a violência são necessárias ações coletivas e organizadas de longo prazo, mas não é possível que o tema passe despercebido nas salas de aula. Assim, a partir da literatura, propomos aqui um trabalho de sensibilização. Nosso objetivo não é encerrar o debate, ou resolver a violência escolar, até porque não é tão simples. Mas instigar um olhar cuidadoso para o tema, tendo a literatura afrofuturista de Octavia Butler como um disparador.
O desejo de criar universos faz parte do espírito que permeia o afrofuturismo2,tendência que tem ganhado cada vez mais força e que foi fortemente influenciada pela literatura de Butler. Podemos observar esse movimento no conto "Sons da Fala" (2019)3. Neste conto, que é um dos que a autora chamou de “contos de verdade”, Rye (personagem principal) após uma pandemia misteriosa, perde seu marido e filhos, bem como sua capacidade de ler e escrever, e a liberdade de falar. Nessa pandemia, um provável vírus afeta irreversivelmente a aptidão de comunicar-se através da fala e/ou da escrita e, aqueles que conseguiram conservar mesmo que um resquício dessas habilidades, correm um risco ainda maior que os demais, isso porque ao menor sinal de sociabilidade, aqueles que a perderam por completo são dominados por um sentimento incontrolável de ódio e inveja que os leva a um enfrentamento violento cujo resultado é quase sempre fatal. Sendo assim, para Rye restou o silêncio, mesmo quando ela ainda pode falar.
O conto inicia com Rye em meio a uma confusão generalizada em um ônibus e, para se salvar, ela aceita a carona de um desconhecido e viajam juntos em busca da sobrevivência. A descrição aponta para um mundo que parece uma paródia distópica do nosso, em que uma simples viagem para obter suprimentos torna-se uma jornada perigosa.
Outro ponto importante é que só a Rye e duas outras personagens que aparecem no final são nomeadas (ela imagina um nome para o homem que encontra). Nessa realidade criada pela Octavia Butler, a humanidade está desprovida daquilo que a torna única: sua individualidade. Nenhuma instituição funciona e o que impera é a luta pela sobrevivência.
A ausência da linguagem verbal é central para compreender a (des)organização da narrativa e pode mover potentes reflexões em sala de aula. A dificuldade da comunicação enquanto impulsionador da violência, embora em um universo distópico, pode se aproximar, em diferentes aspectos, das angústias presentes no cotidiano escolar. Sobretudo no pós-pandemia, sentimos que o comportamento explosivo, violento, está insistentemente presente na escola. Seja pelo contexto social brasileiro que afeta diretamente nossas(os) estudantes, pelo período de isolamento que mexeu com a socialização, ou pelo afastamento do dia-a-dia escolar, percebemos que crianças e jovens têm sofrido psicologicamente, e a forma de externalizar suas dores se dá raramente pela fala. Esta é uma reflexão complexa, cheia de variáveis e sem soluções imediatas. Assim, um dos caminhos para a abertura de diálogos possíveis pode ser o de promover paralelos entre o mundo distópico de Butler e a realidade pós-pandemia brasileira, possibilitando o olhar para si e para o outro a partir da ficção.
O universo proposto por Octavia Butler tem forte potencial de atrair o interesse dos estudantes: o universo distópico, a trama misteriosa e a narrativa instigante. Por isso, criamos uma sequência didática cujo objetivo é instigar a reflexão sobre o poder da comunicação, violência e sonho, a partir do conto de Octavia e de conceitos como distopia e afrofuturismo. Assim, visamos incentivar a leitura, a alteridade, o olhar para a subjetividade e a interação entre estudantes e docentes.
Baixe a proposta didática:
Sobre as autoras:
Eduarda Rodrigues é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, formada em Letras - Português/Francês pela USP e Educadora Social pelo Senac. Escritora com textos publicados nas coletâneas “Narrativas Periféricas: entre pontes e saberes plurais” (2020), “Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras” (2021), “Comunidades e famílias multiespécies: aportes à saúde única em periferias” (2022) e “Micro-uai!” (2023). Em 2023, lançou seu primeiro livro de contos, intitulado “Pedras de Malacacheta”, através da Editora Mondru.
Lara Rocha é mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, na área de Literatura Afrobrasileira e Educação Antirracista, e gestora da área de Educação do CEERT. Foi professora de Língua Portuguesa e Coordenadora Pedagógica da Rede Municipal de São Paulo. Além disso, foi por 10 anos coordenadora pedagógica e educadora no Cursinho Popular Florestan Fernandes. Participou da concepção e execução do Projeto Travessia - Remição de pena através da leitura na Penitenciária Feminina da Capital. Atua também como consultora sobre Educação e Diversidade em instituições privadas e do terceiro setor.
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