Grande Sertão: Veredas, por sua magnificência, possibilita diversos caminhos e interpretações. Antônio Cândido diz que na obra “há de tudo para quem souber ler” e afirma que “cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício.”
O trecho escolhido para tecer o comentário, na sequência narrativa, acontece logo após Riobaldo oferecer uma pedra a Diadorim.
“ — Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e de que nunca fiz menção…” — o qual era a pedra de safira, que do Arassuaí eu tinha trazido,[...]” (pag. 389).
A pedra do Araçuaí
A pedra do Araçuaí poderia ser só um detalhe sem importância se não fosse a sua mudança de identidade. Assim como Diadorim e Riobaldo, a pedra durante a narrativa passa por três momentos:
Em um ela é topázio, em outros uma safira e também ametista
Assim como Diadorim foi:
“Reinaldo/Diadorim/Deodorina”
e Riobaldo foi chamado de:
“Riobaldo/Tatarana/Urutu Branco”
Assim como os protagonistas, a pedra do Araçuaí levitou durante a obra carregada de mistério. Ivana Ferrante Rebello defende que:
“A pedra de Araçuaí, pedra de topázio, de safira e ametista, reforça o caráter ambíguo e complexo da obra, acentuando o drama pessoal do narrador.” (Rebello, 2008)
O que é certo, é que ao fim da obra não temos certeza da identidade de Diadorim e também não sabemos qual realmente era a pedra.
Essa incerteza na obra representa o sertão, pois, esse é e ao mesmo tempo não é. Rosa utiliza a todo momento do princípio da reversibilidade, tudo é e não é.
Diadorim era a neblina de Riobaldo, o menino era cheio de muitos segredos. Era mais através dos seus olhos verdes do que da sua boca, que o narrador tirava as respostas para as suas inquietações, mas mesmo assim, muita coisa ficou encoberta. Diadorim era neblina, no entanto, também era o fio que tecia a história.
O papel do destino na narrativa
Riobaldo diz que foi por destino que ele conheceu Diadorim. Bolle ressalta que Diadorim e Riobaldo se conheceram no porto do Rio de Janeiro, Rio de Janus, deus de dupla face e dos rituais de passagem. Nesse, como em vários outros trechos da obra, por exemplo, na canção de Siruiz, temos pistas sobre os detalhes encobertos.
No trecho que narra a passagem do rio, é onde Riobaldo escuta pela primeira vez que “carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem.” no trecho escolhido para o comentário Diadorim diz: "Ei, retentêia! Coragem faz coragem!” (Pag 391), Grande Sertão: Veredas é composto por uma narrativa descontínua, que não segue uma linearidade e onde citações são repetidas, mas sempre trazendo algo novo pelo contexto.
Retomando o momento da oferta do cristal, temos uma recusa por parte de Diadorim, com a promessa de que ela seria recebida ao fim da guerra. Riobaldo já não quer seguir na vida de jagunço, decidido a ir embora, ele guarda novamente a pedra,
“ Eu guardei a pedrinha na algibeira, depois melhor botei, no bolso do cinto; contei minhas favas, refavas. Diadorim respirava muito” (Pag, 390).
Diadorim queria receber essa pedra em momento de paz, quando os segredos que guardava já tivessem sidos revelados. No trecho seguinte ele afirma que existem coisas que ele ainda não contou e afirma sua fé de que Riobaldo tem o poder de mudar o desenrolar da guerra,
“Riobaldo, põe tento no que estou pedindo: tu fica! E tem o que eu ainda não te disse, mas que, de uns tempos, é meu pressentir: que você pode — mas encobre; que, quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras. a guerra varia de figura…” (Pag,391)
Riobaldo tenta não se deixar levar pelas palavras de Diadorim, que tem sua mão apoiada na dele. "Cenas de Riobaldo e Diadorim são repletas de olhos e mãos” (MOURA,2019). Ele continua com seu propósito de deixar a jagunçagem e Diadorim tem um faniquito de ciúmes, que Riobaldo descreve como se tivesse sido de môtejo e zombariazinha. Nesse momento, Reinaldo/Diadorim, cita Otacília.
No enredo é comum a presença constante desse triângulo amoroso. Em outros momentos da obra, Diadorim mostra ter ciúmes da moça, mas Riobaldo releva, sendo só quase no final que ele perde o prazer de ver esse tipo de reação:
“Mas ele devia de estar curtindo outro instar de outro assunto. Sustido eu sabia: o que era dele sempre pensar— o imaginável de Otacília …. Depois de remediar o tamanho de um silêncio, ele mesmo veio:— E o Alaripe, mais o Quipes; aonde foi que ficaram? Esse ciúme de Diadorim, não sei porque, daquela vez não me deu prazer de vantagem. E eu desdenhei, na meia-resposta:—Por aí...— que eu disse.” (Pag- 592).
Leve Spoiler, se ainda não leu o livro, talvez seja melhor encerrar a leitura por aqui 😉
A pedra também circula neste triângulo amoroso, sendo recusada por Diadorim, Riobaldo envia o cristal para Otacília. Após o desfecho, quando Diadorim morreu e seu corpo de mulher é revelado, Riobaldo sente falta da pedra
“No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou— ah! a pedra-de-ametista, tanto trazida…”
Duas coisas chamam a atenção nesse trecho, a pedra a tanto trazida, não estava presente quando era necessária, assim como Riobaldo, que muito esperou pelo embate com Hermógenes e no momento decisivo não estava no lugar certo e totalmente desprevenido.
Além de que, é curioso o fato de nesse momento Riobaldo afirmar que a pedra é uma ametista, pedra conhecida por simbolizar o conhecimento e elucidação. O segredo foi revelado, mas a sua explicação vai para o túmulo junto com Diadorim.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
Bolle, W. (2001). Diadorim: a paixão como medium-de-reflexão. Revista USP, (50), 80-99.
Candido, Antonio. Tese e Antítese, ensaios. Coleção Ensaios, Volume I, Companhia Editora Nacional.
Rebello, Ivana Ferrante (2008). O jogo do passa-anel: estratégias do narrar em Grande Sertão:Veredas. Disponível em :
http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/037/IVANA_ALMEIDA.pdf. Último acesso 01 de dezembro de 2019.
Rosa, João Guimarães. Grande Sertão : Veredas. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro,2001.
MOURA, Murilo. (2019) Literatura brasileira II. Curso ministrado em : Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, entre agosto e dezembro de 2019.
Que texto maravilhoso