O horrífico encantamento das mulheres: uma comparação entre "A dama do pé-de-cabra" de Alexandre Herculano e "Acauã" de Inglês de Sousa
O "Acauã" e "A dama do pé-de-cabra" foram publicados no século XIX, ambos são baseados em
lendas regionais, o primeiro em lendas amazônicas e o segundo em uma lenda portuguesa.
As lendas têm um papel importantíssimo na formação do imaginário social. Dion (1980),
afirma que elas são discursos de prevenção e advertência que mostram qual atitude deve ser
tomada. Geralmente as lendas apontam personagens que violaram ações que são consideradas
normais/morais e por isso são punidos.
A autora salienta ainda que os transgressores, pelo anti-modelo que representam, colaboram com a norma social.
Nas duas lendas temos homens que quebraram protocolos de cunho religioso:
Dom Diego Lopez (A dama do pé-de-cabra) esquece a orientação que recebera da sua mãe de sempre se benzer e manter a fé.
O Capitão Jerônimo Ferreira ( Acauã) sai para caçar em plena sexta-feira, dia considerado santo por causa da paixão de Cristo.
De certo, algo ruim aconteceria!
A punição, nas duas obras, vem através de uma mulher. Não é raro na tradição judaica/cristã
a mulher representar a perdição (temos Eva como exemplo supremo).
Para escrever o conto, Inglês de Sousa parece ter se baseado na lenda guarani na qual as mulheres acreditavam que o acauã é agoureiro, anunciador de desgraças. Mas, mesmo tendo essa base nos povos originários, o texto não deixa traços de misoginia colonial de lado.
Sobre a influência colonial nas lendas nacionais Carmelino e Santis afirmam:
“É diante do caráter educativo das lendas, ilustrando comportamentos adequados por meio de heróis ou anti-heróis, que nos deparamos com mais essa parte do Brasil colônia, de uma sociedade que, de uma forma ou de outra, reproduzia todos os preconceitos, estereótipos e idealizações relacionados ao feminino de Portugal, mesmo não sendo, aqui, uma terra propícia para isso, por conta da situação socioeconômica do povo, principalmente. Ainda que as lendas não fossem contadas com o intuito de educar, eram contos que circulavam no “boca a boca” e, voluntariamente ou não, acabavam por influenciar, ainda que pouco, no comportamento popular.” (CARMELINO, SANTIS/2011)
Entre tantas semelhanças, as duas obras têm uma diferença: em "A dama do pé-de-cabra, Dom
Diego Lopez e as outras personagens possuem a possibilidade de decisão (para exemplificar: Dom Inigo decide ir atrás de sua mãe, mesmo que de malgrado, é uma escolha dele):
“Que lhe havia de fazer? Uma noite inteira levou em claro a pensar nisso. Pela manhã, a Deus e à sorte, ei-lo que, enfim, se resolve a tentar a aventura, bem que de seu mau grado.” (ALEXANDRE HERCULANO/1843)
Em Acauã as personagens estão presas a vontade de forças superiores, a lei da natureza
impele o homem sem que ele possa dominá-la. Algo comum na literatura naturalista adotada
por Inglês de Sousa.
“O objeto vinha impelido por uma força desconhecida em direção à praia, para o lado em que se achava Jerônimo. Este, tomado de uma curiosidade invencível, adiantou-se, meteu os pés na água e puxou para si o estranho objeto.” (INGLÊS DE SOUSA/2005)
Porém, essa análise se atentará as semelhanças entre as mulheres que trazem a maldição para a
vida dos dois homens.
As duas são encontradas no mato durante uma caçada, a mulher no seu estado bruto, natural.
Outra compatibilidade é a ligação com animais tidos como demoníacos, a Dama do Pé-de-cabra tem os pés parecidos com os de uma cabra, animal que é a fêmea do bode, criatura tida como símbolo do diabo.
Vitória ( Acauã) foi encontrada no rio depois de ser parida por sucuriju “a serpente grande” animal conhecido por ser traiçoeiro. Na história bíblica a serpente simboliza o mal, foi a responsável por tentar Eva.
Você conhece o canto do Acauã? Não!? Pois dê uma olhada:
Como enfeitiçados, os homens parecem não notar a evidente ligação que essas mulheres têm
com o nefasto e as leva para casa, Dom Diogo Lopez com interesses sexuais e o Capitão Jerônimo Ferreira com instinto paterno (por já ter uma filha, Ana, com idade parecida com a de
Vitória).
Pode ser ressaltado nas duas obras a ligação feminina:
A Dama do Pé-de-Cabra leva somente a filha
Vitória tinha um poder sobre e fragilizava somente a irmã
Outra característica convergente é a beleza, as duas são formosas.
Vitória traz mais um detalhe importante, tem uma sugestão de lesbianidade na relação com sua irmã de criação. No animal que representa (conhecido na tradição guarani por levar mulheres a perdição) e sobretudo na sua caracterização:
“Vitória era alta e magra , de compleição forte, com músculos de aço. A tez era morena, quase escura, as sobrancelhas negras e arqueadas; o queixo fino e pontudo, as narinas dilatadas, os olhos negros, rasgados, de um brilho estranho. Apesar da incontestável formosura, tinha alguma coisa de masculino nas feições e nos modos. A boca , ornada de magníficos dentes , tinha um sorriso de gelo. Fitava com arrogância os homens até obrigá-los a baixar os olhos.” (INGLÊS DE SOUSA/2005)
Reatando, é comum a representação da beleza feminina como uma ameaça ao bem-estar e
moral do homem, “vemos que há tempos existe uma forte ideologia da mulher bonita", “formosa”, como aquela capaz de chamar a atenção dos homens.
Como consequência disso, a mulher bonita é aquela que causa a ruína dos homens. Isso justifica, por exemplo, o vestuário feminino dos séculos passados, que valorizam muito pouco as formas femininas. As outras personagens femininas que aparecem, Ana e a filha da Dama do Pé-de-cabra, são apagadas e frágeis:
“Ana [...], era agora franzina e pálida . [...]. Os olhos tinham uma languidez doentia. A boca andava sempre contraída, em uma constante vontade de chorar.” (INGLÊS DE SOUSA/2005)
“ E sua mulher deu um grande gemido e largou o braço de Inigo Guerra, que já tinha seguro, e, continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta. levando a filhinha que muito chorava.”
(ALEXANDRE HERCULANO/1843)
Existe um papel predefinido para mulheres nas lendas. Elas aparecem como vilãs, feiticeiras
ou ingênuas, frágeis e bondosas. Carmelino e Santis (2011) afirmam que, independentemente que sua atuação seja ativa ou passiva, as mulheres aparecem na mesma perspectiva conservadora.
A Dama do Pé-de-cabra e Vitória são mulheres que não seguem aquilo que no século XIX era
posto como atitudes de uma boa moça. A primeira se entrega a um homem que conheceu nas
matas:
“ E, levando a bela dama nos braços, cavalgou na mula em que que viera montado. Só quando, a noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou-se os pés forcados como os de cabra.” ( ALEXANDRE HERCULANO/1843)
É certo que a A Dama do Pé-de-Cabra representa um contexto de idade média, no qual as relações sexuais ainda não estavam tomadas por ideias burguesas, mas pensando que a obra foi
publicada em meados do século XIX é possível analisar o peso dessa ação.
Já a Vitória é atrevida e cheia de mistérios:
“ Tudo, porém, correu sem novidade, até o dia em que completaram quinze anos, pois se dizia que eram da mesma idade. Desse dia em diante , Jerônimo Ferreira começou a notar que a sua filha adotiva ausentava-se da casa frequentemente, em horas impróprias e suspeitas, sem nunca querer dizer por onde andava. [...] quando Jerônimo a repreendia pelas inexplicáveis ausências, dizia com altivez e pronunciado desdém :“ E que que tem vosmecê com isso?” (INGLÊS DE SOUSA/2005)
Em suma, por se tratar de lendas, as obras trazem uma lição de moral. Além de doutrinar sobre
a importância de seguir os rituais e costumes religiosos, essas lendas trazem lições para as
mulheres e homens.
As mulheres devem evitar reproduzir o comportamento dessas personagens, sendo ele ligado aquilo que é maligno. Já os homens devem ter cuidado com as mulheres, pois, elas são capazes de trazer a ruína.
E você leitora? Já levou quantos homens à ruina?
BIBLIOGRAFIA
CARMELINO, Ana Cristina, SANTIS, Ana Júlia Gaiani de. O feminino e o imaginário
popular: O discurso e ideologia nas lendas brasileiras. Disponivel em
http://publicacoes.unifran.br/index.php/dialogospertinentes/article/view/527/427. Último
acesso em 08/09/2019.
DION, Sylvie. A lenda urbana : um gênero narrativo de grande mobilidade cultural.
Disponível em http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/article/view/31156/21875.
Último acesso em 08/09/2019.
HERCULANO, Alexandre. A dama Pé-de-Cabra, Disponível em :
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4914522/mod_resource/content/1/A%20dama.PDF.
Último acesso em 08/09/2019.
SOUSA, Inglês de. Acauã. In: Contos Amazônicos, Editora Martin Claret, São Paulo, 2005.
Lindo trabalho 🤩
muito bom!!