"Se todas as vidas importassem, nós não precisaríamos proclamar enfaticamente que a vida dos negros importa." Angela Davis
“Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados
Mesmo queimando nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade. "
Nego Bispo
Contexto histórico e social da escrita dos poemas
O poeta mineiro Edimilson de Almeida Pereira afirma não pretender deixar nunca que a experiência poética e a experiência estética se afastem também das relações históricas, das relações sociais, das grandes necessidades que o desesperam.
Ivan Teixeira diz que o texto poético não se constitui como entidade isolada, mas como parte das convicções sociais de sua época ou como enunciado necessariamente vinculado ao momento de enunciação. Alfredo Bosi salienta que a poesia pertence à história geral, mas é preciso conhecer qual é a história peculiar, imanente e operante de cada poema. Sendo assim difícil não se atentar ao contexto que os poemas analisados foram publicados, período que provavelmente entrará para a história do país pela instabilidade política nacional e internacional, intervenção militar no Rio de Janeiro em 2017 e várias notícias de mortes de crianças e adolescentes negras nas favelas da cidade, podemos citar como exemplo Vanessa Vitória dos Santos, de 10 anos assassinada com um tiro na cabeça dentro de casa e Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos morta dentro do colégio.
O genocídio da população negra estampa os noticiários. Ressaltando, porém, que segundo Sgobero as imagens produzidas pelo poema não necessariamente precisam ou representam a realidade imediata do leitor ou a contextual do autor, pois o caráter ficcional da obra literária liberta-a deste compromisso. A partir disso Edmilson pode ou não querer representar esse contexto em seus poemas.
Estrutura dos poemas
Ambos os poemas são compostos por três estrofes, apresentam uma construção em metro irregular, os versos não seguem um padrão referente ao número de sílabas poéticas. Gonzalo Aguilar afirma sobre esse tipo de versificação:
“Para a poesia contemporânea, depois da intervenção vanguardista, a versificação, a métrica, a rima e outros procedimentos estão no campo do possível e já não tem um sentido obrigatório: são um repertório de formas à disposição do trabalho poético” (AGUILAR, (1996)
A métrica e a versificação não seguem mais um modelo predeterminado e o poeta possui uma maior liberdade para compor. Não se faz uso de rimas, Antônio Cândido diz que a poesia moderna se apoia mais no ritmo do que na rima, pois nele está a alma do verso.
Sobrevivente
O primeiro texto, Sobrevivente, é escrito em primeira pessoa do plural no indicativo, o poema mostra que o eu lírico se dirige a um grupo ao qual ele acredita pertencer e que se reconhecerá nos versos. Há uma elaboração de uma imagem a ser decifrada como é comum em poesias, Sgobero ressalta:
“ [...] a poesia com [...] o seu caráter de composição de imagens, sejam as proporcionadas intencionalmente pelo poeta, sejam aquelas despertadas pelo leitor no momento da leitura, perfazendo uma relação dialógica extremamente satisfatória em que o universo de ambos: leitor e poeta encontram-se no texto poético por meio de sua composição, produzindo sentidos.” (SGOBERO(1962)
As palavras no poema parecem ter sido minuciosamente escolhidas para criar uma proximidade e comunhão com o leitor, que cooperaria para o funcionamento do texto, que segundo Umberto Eco, é um mecanismo preguiçoso.
Um dado pertinente é a repetição das palavras "somos" na primeira estrofe e " nossos" na segunda que reforçam essa ideia de conjunto, ao mesmo tempo que trabalham com a questão da sonoridade. Esse traço traz também o ritmo assim como a primeira estrofe que não possui pontuação e pronunciada de um só respiro parece invocar a urgência pedida nos seus versos:
" Tão urgente quanto dizer o que somos é
dizer o que não somos "
Visto o poder da fala, Edimilson chama a atenção para a importância não só das palavras afirmativas, mas também das que negariam uma posição negativa atribuída a esse sobrevivente.
O autor, conhecido por fazer pesquisas no campo da antropologia voltados para uma identidade afro-brasileira como no caso do trabalho Negras Raízes mineiras: Os Asturos, e por reivindicar uma negritude nos seus textos, pode ter feito nesse trecho uma chamada para que a população negra se afirme através da língua que por tanto tempo a oprimiu e negue principalmente os termos que reforçam o racismo e suas estruturas.
Considerando que essa análise apenas sugere possibilidades de interpretação, e como Octavio Paz afirma, "o poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente." o poema pode também estar se referindo a toda a humanidade pois a questão de identidade é presente em todos seres humanos.
Na estrofe seguinte é tratada a dualidade de ser um sobrevivente quando muitos morreram, se alegrar pela vitória ou se entristecer pelas perdas!?
“ Ao mesmo tempo em que devemos chorar
os nossos mortos, precisamos nutrir e alegrar os nossos vivos.”
O trauma faz parte do processo de identidade tratado na primeira estrofe, é preciso chorar os mortos, mas também ter ânimo para incentivar os vivos, deixar o passado e passar para um novo estágio da sobrevivência que se tornará uma entre muitas insígnias. Edimilson parece compartilhar da mesma ideia da filosofia indígena Fox, que Lévi Strauss traz em seu livro O Pensamento Selvagem “A morte é dura; mais dura ainda é a tristeza.” A última estrofe aparece como conclusão da união desta ambiguidade:
O resultado de ambas as equações:
não-esquecer.
O termo não-esquecer é uma amalgamada onde a união entre as palavras "não" e "esquecer" é forçada, mostrando que a possibilidade de um esquecimento não é viável nem mesmo nas palavras. Palavras essas que em conjunto são capazes de provocar estímulos e excitar emoções de quem as ler. Octávio Paz (1984) diz que o poema nascido da palavra desemboca em algo que a transpassa, no caso dessa obra ao falar de morte e esquecimento Edimilson retoma o assunto sobre o qual opinou em 2004 em entrevista ao jornalista Fabricio Marques, onde ressaltou que,
“O apagamento da memória de alguns mortos não se deve ao esquecimento natural, mas um ato político. Se apagar um nome pode ser considerado um ato político, fazê-lo voltar à tona, fazer a voz ressurgir aos ouvidos dos vivos também é um ato político, forte sobretudo se aquele que é lembrado era conhecido por discordar do discurso vigente.” (EDMILSON, 2004)
Nesse caso o não-esquecer seria mais uma forma de resistência desse sobrevivente com os seus iguais, mesmo que de maneira póstuma.
Oficio
O título do segundo texto, Oficio, segundo o dicionário Aurélio, significa qualquer atividade que requer técnica e habilidades específicas, mas também pode ser uma comunicação escrita formal, cerimoniosa utilizada geralmente para uma solicitação. Se for levar para a questão da diáspora negra o autor pode estar procurando reivindicar sua origem africana, o que pode ser uma das análises desses versos:
A origem ressona
grave
em nação ou pacto
Mas também o conceito ofício pode ser o de escritor/ poeta:
Espécie que escreve
para esquecer
Tanto um verso quanto o outro desembocam no esquecimento, forçado por terceiros ou tentado por algum motivo pelo autor.
Como no primeiro poema, Edimilson traz aqui a importância da fala colocando-a acima da escrita ao dizer:
O escrito, à mercê
Do que foi dito,
Inaugura outro país
Através da fala, mais do que da escrita, é criada uma nova pátria. Sua origem não está documentada. Essa valorização da oralidade sobre a escrita remete mais uma vez a cultura africana. A escrita não transmitiria toda a verdade, mas somente um caco de palavra.
O verso" Inaugura outro país" por esse viés mostraria a questão do tráfico de negros para outras nações. Sequestrados vários africanos chegam em nova terra e fundam através da exploração do seu trabalho e de uma série de violências sofridas uma nova nação. Outros trechos do poema reforçam essa ligação com a África e a escravidão como é o caso:
Há quem a leve
No bolso, em crimes
Que nos deserdam,
A escravidão enquanto tirava a noção de pertencimento e origem dos africanos sequestrados e seus descendentes enchia os bolsos dos grandes fazendeiros e sustentava toda economia de uma sociedade escravagista.
Esse processo retirou a identidade das pessoas escravizadas e de seus descendentes. Se no primeiro texto Edimilson diz,
Tão urgente
quanto dizer o que somos é
dizer o que não somos.
No segundo ele afirma que:
Pela origem
Somos-não-somos.
Sem a possibilidade de definir categoricamente sua origem (sabem o continente, mas dificilmente o país) os afrodescendentes fruto dos sobreviventes da escravidão carregam uma dificuldade de afirmar sua identidade étnica e principalmente suas raízes. Como se existissem por existir, sem um início demarcado.
Embora desempenhe um papel decidido e até mesmo um pouco otimista no primeiro texto, o autor parece desanimado no segundo. Enquanto busca um não-esquecer no texto SOBREVIVENTE diz no OFICIO que faz parte de uma espécie que escreve para esquecer. Esquecer o que? Sua realidade? Seu passado? A ignorância de sua origem?
Há o uso de metalinguagem, o eu lírico diz como escreve e o porquê escreve. Mas a mensagem não se mostra clara como parece ser no primeiro poema, metáforas encobrem o significado dos versos como se eles devessem ser um mistério assim como a " origem".
Produzidos pela mesma pessoa, em um mesmo período, esses textos apesar de aparentemente ter o mesmo tema como base, despertam sentimentos contraditórios que parecem despistar ao mesmo tempo que apontam para o problema central, o genocídio e o etnocídio de um povo.
REFERÊNCIAS
AGUILAR, GONZALO. Poesia Concreta Brasileira, As vanguardas na encruzilhada Modernista. São Paulo: EDUSP, 2005.
CANDIDO, ANTONIO. O estudo analítico do poema. São Paulo, Humanitas Publicações, 1996.
ECO, UMBERTO. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
SCOBERO, LUCIENE. Poesia e imagem: Uma perspectiva de leitura do texto poético, 2013.
LÉVI-STRAUSS. O pensamento Selvagem. Editora Plon, Paris, 1962.
TEIXEIRA, IVAN. Artifício, persuasão e sociedade em Olavo Bilac. Revista USP, São Paulo, n.54, p.98-111, junho/agosto, 2002.
PAZ, OCTÁVIO. O arco e a lira. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.
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