Texto escrito em parceria com a professora Lara Rocha e publicado no site Escrevendo o futuro
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Nos últimos anos, a trajetória de Carolina Maria de Jesus teve grande repercussão, tanto no setor educacional — várias escolas, cursinhos populares e movimentos sociais receberam seu nome, além do aumento da discussão em torno da sua obra em sala de aula — quanto no cultural. A exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros", foi a mostra mais visitada no Instituto Moreira Salles em 2021. Em 2022 a escritora foi tema do samba-enredo da Colorado do Brás.
Mas afinal, quem foi Carolina Maria de Jesus?
Em 1914, nasceu Carolina Maria de Jesus na pequena cidade de Sacramento, sul de Minas Gerais. O Brasil, que em maio de 1888 aboliu a escravidão e em novembro de 1889 substituiu um regime monárquico pelo republicano, mantinha características de um passado escravista, revelado na desigualdade racial e social. Na sua infância, Carolina Maria de Jesus conviveu com pessoas que foram escravizadas, por exemplo, o seu avô, a quem chamava de Sócrates Africano. A pequena Bitita, apelido que recebeu quando criança, cresceu rodeada de pobreza, analfabetismo, racismo e violência de gênero.
Na obra autobiográfica “Diário de Bitita”, a partir da escrita de Carolina Maria de Jesus mais velha, temos o privilégio de ler o que ela escreve sobre si e como se vê, o que rememora e como revive a encenação de seu e outros corpos em seus múltiplos papéis, quais são as marcas históricas e sociais de sua temporalidade.
A escrita de Carolina retrata as relações vividas em seu cotidiano. Nele podemos observar uma disputa do espaço de seu corpo negro na sociedade, uma luta entre o “lugar natural” ao qual estava destinada pelas marcas sociais e econômicas do pós-abolição e o “lugar não-natural” ao qual desejava e buscava estar. Na sua narrativa é possível notar uma conexão contraditória e dialética entre o Dominante (adultos, homens e brancos) e o Dominado (criança, mulher e negra). Porém, essa contraposição não ocorre somente em termos abstratos, mas também de forma real na luta diária de Bitita contra as múltiplas facetas das opressões que a cercam.
Carolina nos apresenta uma Bitita sedenta por conhecimento, sobre si e sobre o mundo. Diante da sua realidade ela questiona à mãe se ela é bicho ou gente. Contudo, não fica satisfeita em saber o que é, precisa descobrir também quem ela é dentro do mundo: mulher ou homem? Nessa primeira impressão, os homens eram figuras fortes e provedoras e as mulheres fracas, e ela não queria esse lugar. Com o passar do tempo, Bitita percebe que as mulheres podem ter tanto poder quanto um homem, afinal ouviu durante uma festa junina a história de uma mulher com poder de mandar um rei cortar a cabeça de João Batista, de quem todos falavam.
No entanto, Bitita percebe que seu corpo além de ser percebido por ela e por outros como mulher, também tem outra marca social, a negritude, permeada por uma pobreza histórica. Mesmo nesse lugar, a menina não se cala e enfrenta até mesmo um juiz branco para defender aquilo em que acredita, sendo chamada de “negrinha atrevida” por ter coragem de expor os abusos sexuais que o filho dele cometia contra as meninas do orfanato.
Toda essa determinação e curiosidade levaram a menina a ir além de todo imaginário pensado e possível para a sua realidade. Aprendeu a ler e escrever desde pequena, era questionadora e corajosa, características que lhe renderam a fama de “louca” e a levaram para cadeia bem novinha.
O jornalista Tom Farias, ao falar de Carolina Maria de Jesus, ressalta que ela teve a sua jornada associada à desordem social, pois não aceitava para si o rumo de vida orientado pelos outros. Isso fez com que ela se tornasse uma peregrina, com longas andanças a pé de cidade em cidade, em busca de alimento e de dignidade.
Em 1937, Carolina Maria de Jesus decide migrar para a cidade de São Paulo, depois de viver por mais de vinte anos em Sacramento. As razões para a migração são muitas, mas as dificuldades em conseguir trabalho, uma saúde instável e sua insatisfação com a própria vida fizeram com que decidisse tomar o rumo de uma cidade que era desejada e temida, mas que para Carolina poderia significar um recomeço.
Na cidade de São Paulo, além das marcas sociais de "mulher" e "negra" que Carolina representava, foi acrescentada a de “favelada”. Foi na favela do Canindé que o seu livro mais famoso foi escrito. Quarto de despejo: diário de uma favelada, lançado pela primeira vez em 1960, tornou Carolina uma das escritoras com maior número de vendas, no ano, no Brasil e com grande repercussão internacional.
O livro se tornou um best-seller traduzido para 16 línguas e vendido em mais de 40 países, entre eles a França. A revista francesa Paris Match publicou uma matéria sobre a escritora brasileira e seu livro, revista que tinha como leitora fiel a antilhana Françoise Ega, mulher negra e trabalhadora doméstica que, como Carolina, escrevia e sonhava em ter seus textos publicados. Françoise Ega sentiu-se profundamente tocada por Carolina Maria de Jesus, ao ponto de criar um diálogo com ela em sua obra Cartas a uma negra, na qual ela escreve cartas para a brasileira, cartas que nunca foram entregues. Em maio de 1962, em seu primeiro texto para Carolina, Françoise diz:
Pois é, Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos leem você por curiosidade, já eu jamais lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, [...]
Apesar de chamar os seus textos para Carolina de cartas, Françoise cria uma espécie de diário no qual narra o seu dia a dia como trabalhadora doméstica. Através dos seus textos é possível ter uma ideia de como era ser uma mulher negra e pobre vivendo na França.
12 de abril de 1963
No primeiro dia de trabalho na casa da patroa, trouxe comigo uma marmita. Ela disse: “Não precisa de uma marmita, aqui não é uma cantina! Sempre haverá algo para comer!”. Assim, no dia seguinte, não levei nada de casa para o almoço. A patroa disse aquilo, mas seu marido olhou para mim de pé, com meus setenta quilos bem distribuídos, e disse: “Essa mulher deve comer feito um animal!”. Ao ouvir a frase, perdi o apetite e, de noite, voltando para casa, senti meu estômago roncar, pois tinha hesitado em comer direito.
25 de novembro de 63
Rapidamente terminei de limpar a casa e fui visitar a velhinha querida. Ao notar minha presença, ela exclamou: “Chegou a minha martinicana!” Enfim, houve progresso, ela não disse a “negra”. Tirei o pó de todas as peças enquanto ela me falava o que tinha feito em La Roque-d’Antherón durante sua estada, também me contou sobre Beaucaire, Sisteron e Miramas, onde os netos dela moram. E pela centésima vez lhe descrevi a casa da minha mãe e as árvores que a rodeavam. O que ela não entende de jeito nenhum é que os invernos nunca chegam lá; por ela, tento esquecer que outras mulheres de olhos azuis têm o coração sombrio.
Ao desafiar a realidade a sua volta e escrever com os poucos recursos que estavam à sua disposição, ou seja, em cadernos velhos encontrados no lixo, Carolina instaura uma nova tradição na literatura. Não eram só homens e mulheres brancas que podiam escrever, uma mulher negra e favelada também poderia.
Nascida há 108 anos, Carolina segue emocionando e influenciando a escrita de mulheres negras. Mesmo sendo uma escrita única, as palavras de Carolina representaram e seguem representando inúmeras mulheres, como é o caso das escritoras do livro Carolinas, lançado em 2021. Em comemoração aos 60 anos de publicação de Quarto de Despejo, a Festa Literária das Periferias- FLUP criou um processo de formação de escrita, para o qual se inscreveram mais de 500 mulheres. Esta edição do projeto FLUP – “Pensa, uma revolução chamada Carolina” foi destinada exclusivamente a mulheres autodeclaradas negras. O evento contou com mulheres de norte a sul do país, algumas ainda alunas do Ensino Médio, outras já aposentadas, e não só do Brasil, mas também da Europa e África. Todas essas mulheres, além da cor, têm em comum Carolina Maria de Jesus como precursora e inspiração. Como resultado desse processo, foi lançado em 2021 o livro Carolinas: a nova geração de escritoras brasileiras, escrito pelas mãos de 180 mulheres.
Carolina Maria de Jesus, em suas obras, mostra que não existe ninguém mais preparado para escrever sobre nossas vivências do que nós mesmos. É hora de trabalhar com o gênero diário em sala de aula, apresentar as obras citadas no texto e propor a turmas de estudantes que escrevam sobre o seu dia a dia.
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Já li quarto de despejo texto muito bom
Informações muito importantes